O Album

Minha Júlia, um conselho de amigo;
Deixa em branco este livro gentil:
Uma só das memórias da vida
Vale a pena guardar, entre mil.


E essa n’alma em silêncio gravada
Pelas mãos do mistério há-de ser;
Que não tem língua humana palavras,
Não tem letra que a possa escrever.


Por mais belo e variado que seja
De uma vida o tecido matiz ,
Um só fio da tela bordada,
Um só fio há-de ser o feliz.


Tudo o mais é ilusão, é mentira,
Brilho falso que um tempo seduz,
Que se apaga, que morre, que é nada
Quando o sol verdadeiro reluz.


De que serve guardar monumentos
Dos enganos que a esp’rança forjou?
Vãos reflexos de um sol que tardava
Ou vãs sombras de um sol que passou!


Crê-me, Júlia: mil vezes na vida
Eu coa minha ventura sonhei;
E uma só, dentre tantas, o juro,
Uma só com verdade a encontrei.


Essa entrou-me pela alma tão firme,
Tão segura por dentro a fechou,
Que o passado fugiu da memória,
Do porvir nem desejo ficou.


Toma pois, Júlia bela, o conselho:
Deixa em branco este livro gentil,
Que as memórias da vida são nada,
E uma só se conserva entre mil.

Flor de Ventura

A flor de ventura
Que amor me entregou,
Tão bela e tão pura
Jamais a criou:


Não brota na selva
De inculto vigor,
Não cresce entre a relva
De virgem frescor;


Jardins de cultura
Não pode habitar
A flor de ventura
Que amor me quis dar.


Semente é divina
Que veio dos Céus;
Só n’alma germina
Ao sopro de Deus.


Tão alva e mimosa
Não há outra flor;
Uns longes de rosa
Lhe avivam a cor;


E o aroma... Ai!, delírio
Suave e sem fim!
É a rosa, é o lírio,
É o nardo, o jasmim;


É um filtro que apura,
Que exalta o viver,
E em doce tortura
Faz de ânsias morrer.


Ai!, morrer... que sorte
Bendita de amor!
Que me leve a morte
Beijando-te, flor.

Bela D'Amor

Pois essa luz cintilante
Que brilha no teu semblante
Donde lhe vem o ‘splendor?
Não sentes no peito a chama
Que aos meus suspiros se inflama
E toda reluz de amor?


Pois a celeste fragrância
Que te sentes exalar,
Pois, dize, a ingénua elegância
Com que te vês ondular
Como se baloiça a flor
Na Primavera em verdor,
Dize, dize: a natureza
Pode dar tal gentileza?
Quem ta deu senão amor?


Vê-te a esse espelho, querida,
Ai!, vê-te por tua vida,
E diz se há no céu estrela,
Diz-me se há no prado flor
Que Deus fizesse tão bela
Como te faz meu amor.

Não És Tu

Era assim, tinha esse olhar,
A mesma graça, o mesmo ar,
Corava da mesma cor,
Aquela visão que eu vi
Quando eu sonhava de amor,
Quando em sonhos me perdi.


Toda assim; o porte altivo,
O semblante pensativo,
E uma suave tristeza
Que por toda ela descia
Como um véu que lhe envolvia,
Que lhe adoçava a beleza.


Era assim; o seu falar,
Ingénuo e quase vulgar,
Tinha o poder da razão
Que penetra, não seduz;
Não era fogo, era luz
Que mandava ao coração.


Nos olhos tinha esse lume,
No seio o mesmo perfume ,
Um cheiro a rosas celestes,
Rosas brancas, puras, finas,
Viçosas como boninas,
Singelas sem ser agrestes.


Mas não és tu... ai!, não és:
Toda a ilusão se desfez.
Não és aquela que eu vi,
Não és a mesma visão,
Que essa tinha coração,
Tinha, que eu bem lho senti.

Beleza

Vem do amor a Beleza,
Como a luz vem da chama.
É lei da natureza:
Queres ser bela? - ama.


Formas de encantar,
Na tela o pincel
As pode pintar;
No bronze o buril
As sabe gravar;
E estátua gentil
Fazer o cinzel
Da pedra mais dura...
Mas Beleza é isso? - Não; só formosura.


Sorrindo entre dores
Ao filho que adora
Inda antes de o ver
- Qual sorri a aurora
Chorando nas flores
Que estão por nascer –
A mãe é a mais bela das obras de Deus.
Se ela ama! - O mais puro do fogo dos céus
Lhe ateia essa chama de luz cristalina:


É a luz divina
Que nunca mudou,
É luz... é a Beleza
Em toda a pureza
Que Deus a criou.

Víbora

Como a víbora gerado,
No coração se formou
Este amor amaldiçoado
Que à nascença o espedaçou.


Para ele nascer morri;
E em meu cadáver nutrido,
Foi a vida que eu perdi
A vida que tem vivido.

Ai, Helena!

Ai, Helena!, de amante e de esposo
Já o nome te faz suspirar,
Já tua alma singela pressente
Esse fogo de amor delicioso
Que primeiro nos faz palpitar! ...
Oh!, não vás, donzelinha inocente,
Não te vás a esse engano entregar:
E amor que te ilude e te mente,
É amor que te há-de matar!
Quando o Sol nestes montes desertos
Deixa a luz derradeira apagar,
Com as trevas da noite que espanta
Vêm os anjos do Inferno encobertos
A sua vítima incauta afagar.
Doce é a voz que adormece e quebranta,
Mas a mão do traidor ...faz gelar.
Treme, foge do amor que te encanta,
É amor que te há-de matar.

Seus Olhos

Seus olhos - que eu sei pintar
O que os meus olhos cegou –
Não tinham luz de brilhar,
Era chama de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como facho do Destino.


Divino, eterno! - e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, um só momento que a vi,
Queimar toda a alma senti...
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.

A Délia

Cuidas tu que a rosa chora,
Que é tamanha a sua dor,
Quando, já passada a aurora,
O Sol, ardente de amor,
Com seus beijos a devora?
- Feche virgíneo pudor
O que inda é botão agora
E amanhã há-de ser flor;
Mas ela é rosa nesta hora,
Rosa no aroma e na cor.


- Para amanhã o prazer
Deixe o que amanhã viver.
Hoje, Délia, é nossa a vida;
Amanhã... o que há-de ser?
A hora de amor perdida
Quem sabe se há-de volver?
Não desperdices, querida,
A duvidar e a sofrer
O que é mal gasto da vida
Quando o não gasta o prazer.

Preito

É lei do tempo, Senhora,
Que ninguém domine agora
E todos queiram reinar.
Quanto vale nesta hora
Um vassalo bem sujeito,
Leal de homenage e preito
E fácil de governar?


Pois o tal sou eu, Senhora:
E aqui juro e firmo agora
Que a um despótico reinar
Me rendo todo nesta hora,
Que a liberdade sujeito...
Não a reis! - outro é meu preito:
Anjos me hão-de governar.

A um Amigo

Fiel ao costume antigo,
Trago ao meu jovem amigo
Versos próprios deste dia.
E que de os ver tão singelos,
Tão simples como eu, não ria:
Qualquer os fará mais belos,
Ninguém tão d’alma os faria.


Que sobre a flor de seus anos
Soprem tarde os desenganos;
Que em torno os bafeje amor,
Amor da esposa querida,
Prolongando a doce vida
Fruto que suceda à flor.


Recebe este voto, amigo,
Que eu, fiel ao uso antigo,
Quis trazer-te neste dia
Em poucos versos singelos.
Qualquer os fará mais belos,
Ninguém tão d’alma os faria.

Bela Infanta

Estava a bela Infanta
No seu jardim assentada,
Com o pente de oiro fino
Seus cabelos penteava.
Deitou os olhos ao mar,
Viu vir uma enorme armada;
Capitão que nela vinha,
Muito bem que a governava.
- Dize-me, ó capitão
Dessa tua nobre armada,
Se encontraste meu marido
Na terra que Deus pisava?
"Anda tanto cavaleiro
Naquela terra sagrada...
Dize-me tu, ó senhora,
As senhas que ele levava.
- Levava cavalo branco,
Selim de prata doirada;
Na ponta da sua lnaç
A cruz de Cristo levava.
"Pelos sinais que me deste
Lá o vi numa estacada
Morrer morte de valente:
Eu sua morte vingava."
- Ai triste de mim viúva,
Ai triste de mim coitada!
De três filhinhas que tenho.
Sem nenhuma ser casada!...
"Que darias tu, senhora,
A quem no trouxera aqui?
- Dera-lhe oiro e prata fina,
Quanto riqueza há por hi.
"Não quero oiro nem prata,
Não nos quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem no trouxera aqui?
- De três moinhos que tenho,
Todos três tos dera a ti;
Um mói o cravo e a canela,
Outro mói do gerzeli:
Rica farinha que fazem!
Tomara-os el-rei p'ra si.
"Os teus moinhos não quero,
Não nos quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem to trouxera aqui?
- As telhas do meu telhado
Que são oiro e marfim.
"As telhas do teu telhado
Não nas quero para mi:
Que darias mais, senhora
A quem no trouxera aqui?
- De três filhas que eu tenho,
Todas três te dera a ti:
Uma para te calçar,
Outra para te vestir
A mais formosa de todas
Para contigo dormir.
"As tuas filhas, infanta,
Não são damas para mi:
Dá-me outra coisa, senhora;
Se queres que o traga aqui.
- Não tenho mais que te dar,
Nem tu mais que me pedir.
"Tudo, não, senhora minha,
Que ainda te não deste a ti.
- Cavaleiro que tal pede,
Que tão vilão é de si.
Por meus vilões arrastado
O farei andar aí
Ao rabo do meu cavalo,
À volta do meu jardim.
Vassalos, os meus vassalos,
Acudi-me agora aqui!
"Este anel de sete pedras
Que eu contigo reparti...
Que é dela a outra metade?
Pois a minha, vê-la aí!
- Tantos anos que chorei,
Tantos sustos que tremi!...
Deus te perdoe, marido,
Que me ias matando aqui.





Nau Catrineta

Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma história de pasmar.


Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.


Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.


Deitaram sortes à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.


- "Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal!"


- "Não vejo terras de Espanha,
Nem prais de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar."


- "Acim, acima, gageiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal!"


- "Alvíssaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal!
Mais enxergo três meninas,
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar."


- "Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar."


- "A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar."


- "Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar."


- "Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar."


- "Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual."


- "Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar."


- "Dar-te-ei a Nau Catrineta,
Para nela navegar."


- "Não quero a Nau Catrineta,
Que a não sei governar."


- "Que queres tu, meu gageiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?"


- "Capitão, quero a tua alma,
Para comigo a levar!"


- "Renego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar!
A minha alma é só de Deus;
O corpo dou eu ao mar."


Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;


E à noite a Nau Catrineta
Estava em terra a varar.


Adaptação de Almeida Garrett

Barca bela

Pescador da barca bela,
Onde vás pescar com ela
Que é tão bela,
Ó pescador?


Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Ó pescador!


Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Ó pescador!


Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Ò pescador.


Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge de ela,
Foge de ela,
Ó pescador!

As minhas asas

Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.


- Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que mas deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
- Veio a ambição, co' as grandezas,
Vinham para mas cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.


Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.


Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
- Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.


E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não erguiam ao céu.
Cegou-me essa luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!


- Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.


E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei aos céus.